Santa Cruz dos Dembos
Mazelas da guerra
Fazenda Santa Cruz dos Dembos
Continuação
Um procedimento, que me chamou à atenção, foi o de que, quando caminhavam, nas picadas, e avistavam as nossas viaturas, as pessoas afastavam-se das bermas uns 10 a 20 metros
Não consegui saber a razão, mas suponho que deve ter a ver com procedimentos menos corretos, no início da guerra
Para quem não saiba, quando a guerra começou, em 1961, no Norte de Angola, houve muita violência de parte a parte
Por isso, talvez, ainda, se lembrassem dos tempos negros do início da guerra
Durante os 9 meses que estivemos no Norte de Angola, acho que nenhum militar da minha companhia teve relações sexuais com as mulheres das povoações, ao contrário do que aconteceu, quando fomos para a zona de Nova Lisboa
Dizia-se que o avião que levava o pré, para Maquela do Zombo, também transportava as prostitutas
Durante os 9 meses que estivemos naquele acampamento, nunca lá vi nenhum civil, evitavam a nossa companhia
Mesmo assim tínhamos, todos os dias de içar e arriar a Bandeira Nacional, às 6 e 18 horas, para que aprendessem as suas cores, coisa que não fomos capazes de fazer em cinco séculos, tal como não lhes conseguimos ensinar a nossa língua
Antes do Natal de 1969, ainda estivemos 2 meses destacados na Fazenda Santa Cruz dos Dembos, uma fazenda de café, cuja variedade de cafeeiros tinha de ter sombra
Uma mata tão densa, que quase não se via o sol, desbastavam-na, deixando algumas árvores muito altas, para fazerem sombra aos cafeeiros
Na fazenda trabalhavam cerca de 70 trabalhadores vindos do centro de Angola, porque os do Norte só se dedicavam à construção de armadilhas para caça e pesca
Estes homens estavam a abrir uma picada, cortando arvores, que 2 homens não conseguiam abraçar, só com machados
Quem os comandava, um Cabo-verdiano, estava constantemente a dizer que queria ouvir a sinfonia dos machados
Nós tínhamos como missão dar-lhes proteção, como estavam destacados 2 pelotões, dia-sim-dia-não, lá íamos
Num dos dias em que ficámos de descanso, o outro pelotão sofreu uma emboscada, uma rajada atingiu 2 soldados, que tiveram de ser evacuados, para Lisboa, felizmente ficaram bem
A Companhia tinha um Furriel Miliciano com a especialidade de enfermeiro, coadjuvado por três ou quatro maqueiros, que sabiam dar injeções e fazer pensos
O maqueiro que estava connosco era louco por borboletas, passava o tempo todo a injeta-las, para as embalsamar
Um dia teve de dar uma injeção, ao Alferes do meu pelotão, a qual lhe causou uma grande infeção, teve de ser internado, porque a seringa não estava devidamente desinfetada
Já não me lembro se os trabalhos passaram a ser dia-sim-dia-não, o que me lembro é um dia estava com o outro Alferes, e depois do almoço, perguntou-me se era voluntário para ir com ele, porque queria saber para onde ia a picada, respondi-lhe que na tropa não era voluntário para nada
Ordenou-me que fosse com ele, mais dois soldados e um guia, munido de catana, para abrir o caminho, para que pudéssemos penetrar naquele labirinto.
As horas foram-se passando, já não sabíamos como sair dali, começámos por marcar as árvores, não adiantou, a seguir foi por votação, quando três diziam para onde era, lá íamos, mas também não resultou
Disse-lhe que o melhor era fazermos fogo para o ar, na esperança de que os nossos camaradas, que tinham ficado a dar proteção aos trabalhadores, nos respondessem
Felizmente resultou, conseguimos, antes de o sol se pôr, sair do labirinto
Caso estivesse por ali perto, algum inimigo, tinha-nos apanhado à mão, porque a nossa desorientação era total
Monangambé, que significa contratado, é um poema de António Jacinto, musicado em 1960, às escondidas, por Rui Mingas
Letra de Monangambé
Naquela roça grande
não tem chuva
é o suor do meu rosto
que rega as plantações;
Naquela roça grande
tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue
feitas seiva
o café vai ser torrado
pisado,
torturado,
negro da cor do contratado
Negro da cor do contratado!
Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:
Quem se levanta cedo?
quem vai à tonga?
quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina
e em troca recebe desdém
fuba podre,
peixe podre,
panos ruins,
cinquenta angolares
porrada se refilares”?
Quem?
Quem faz o milho crescer
E os laranjais florescer?
- Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
máquinas,
carros,
senhoras
e cabeças de pretos para os motores?
Quem faz o branco prosperar
ter barriga grande
ter dinheiro?
_ Quem ?
e as aves que cantam
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
- “ Monangambééé…..”
Ah! Deixem-me ao menos
subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo ( seiva de palmeira, retirada junto às folhas, como se faz para retirar a resina)
E esquecer
diluído nas minhas bebedeiras.
Já tinha ouvido a canção dos contratados, mas nunca me tinha cruzado com eles
Quis o destino que primeiro visse o que faziam e como eram tratados, e menos de um ano depois, sem contar, assistisse ao seu recrutamento
Estava nos arredores de Nova Lisboa, quase pôr-do-sol, quando vi um grande alvoroço, numa das povoações dos arredores da cidade
Fui até lá, fiquei à distância a observar. Estavam todos reunidos, mulheres e homens, as mulheres agarravam-se aos seus homens, gritavam e choravam, o Soba ia correndo olhar por todos, de repente apontava para um, que imediatamente entrava no autocarro, que os iria levar, sem qualquer contestação
Assim que o autocarro ficou cheio, fecharam as portas. Disseram-me que partiriam na madrugada do dia seguinte
Diziam que aqueles homens, quando regressassem, os que o fizessem, pouco ou nada trariam, porque tinham de pagar a alimentação, o alojamento, etc.
Continua