75 anos!
Hoje completo a bonita idade de três quartos de século
Mesmo que o Cartão de Cidadão diga que é no dia 15
Os meus pais não tiveram tempo de ir atempo registar-me
A Junta de Freguesia era distante, não havia transportes
Ainda que no Alentejo, cem quilómetros, seja já ali
Eram precisas duas testemunhas e palmilhar alguns quilómetros, a pé
As consequências da guerra continuavam a fazer-se sentir
Fome, miséria, tudo racionado, só com senhas, o pouco, era comprado
Estou muito grato por aqui ter chegado
Felizmente, sem a ajuda de medicamento, nos últimos 20 anos, tomado
Muitas coias, algumas, muito boas ter presenciado
A começar por estas palavras, que podem chegar a todo o lado
Outras muito dolorosas como, aos dez anos, do ninho ter sido afastado
Como acontecia, por todo o país, em que muitos, ainda saíram mais cedo
Não tendo tido direito a irem à Escola, em relação a eles, sou um privilegiado
Porque o meu pai, sempre, disse que entre abandonar a escola, para não passar fome, ou continuar na escola, para os seus filhos, ela era o mais importante
Despois de guardar ovelhas, porcos, vacas, e outra vez porcos, fui para Lisboa
O meu irmão, mais novo 4 anos, caiu de cima de uma burra, partiu um braço e teve de ir para o Hospital de São José. O meu pai procurou uma prima da minha mãe, que vivia na Capital, pediu-lhe para me arranjar um emprego
Em maio de 1958, fui para Lisboa, para trabalhar num lugar de frutas e hortaliças, na rua da Imprensa Nacional
Os primeiros meses foram muito dolorosos, porque saltei de um dia para o outro, do campo, para a Capital, sem nunca antes ter visto uma cidade, um comboio, o mar, uma cerejeira
Os meus patrões, um casal do distrito da Guarda, sempre me trataram bem, mas no início não nos entendíamos
As freguesas estavam constantemente o corrigir-me, dizendo-me “que não era lete, que era leite, que não era mantega, que era manteiga”. Quanto lhes estou grato!
Lisboa estava pejada de serviçais: padeiros, leiteiros, carvoeiros, marçanos, ardinas, varinas, criadas de servir, lavadeiras, aguadeiros, compradores de ferro velho, o moço do talho, o moço do lugar de frutas e hortaliças, a mulher da fava-rica, a vendedora de figos…….
As donas de casa não precisavam de sair, para as compras diárias, nós levávamos-lhas a casa. Todos os dias ia perguntar-lhes o que queriam e de seguida ia tudo entregar, para chegar a tempo para o almoço
Os prédios antigos tinha escadas em ferro, no exterior, por onde nós podíamos subir e descer, nada de utilizar as escadas interiores, de madeira, muito bem enceradas, onde nos poderíamos ver, como se fossem espelhos
As mulheres da pequena, média e alta burguesia, não trabalhavam, com raras exceções, e, ainda, tinham criadas, viviam nas suas gaiolas douradas
Conforme o rendimento e o número de filhos, tinham ente 1 e 3 criadas, a cozinheira, a dos meninos, e a de fora
Como o trabalho do lar não tem hora para acabar
AS criadas de servir tinham, ao domingo, de 15 em 15 dias, 4 horas para namorar, das 15 às 19, se se conseguissem despachar
Eu, nem isso, também ainda não namorava!
Tinha era um bom horário, na parede, afixado: entrava às 9, saía às 13, entrava às 15 e saía às 19, só para inglês ver, na realidade entrava às 5 ou 6, conforme o que o patrão tinha para comprar, no Mercado da Ribeira e no Mercado da fruta.
Pelas sete e meia, o meu patrão continuava a fazer as compras, eu apanhava o elétrico, para ir abrir o estabelecimento, às oito horas
O mais difícil era abrir a porta, por ser em ferro, a toda a largura do estabelecimento, muito pesada, que, à força de braços, ia enrolando
Primeiro que a conseguisse descolar do chão, a minha coluna até gemia
O meu patrão dizia-me para pedir, a quem passa-se, ajuda
Mas eu tinha vergonha de incomodar as pessoas, pedindo-lhes que começassem o dia fazer a força, só uma vez pedi ajuda, a um rapaz, que a aparentava ter a minha idade
Tomava o pequeno-almoço e almoço atrás do balcão, fechava o estabelecimento às 21, arrumava-o e lava o chão
Depois jantávamos, a patroa lavava a loiça, e só depois de irem para a casa onde, praticamente, só dormiam, é que me podia deitar, porque o meu divã estava em frente ao lava loiça
A primeira senhora, que vi conduzir um carro, deu-me boleia, foi a esposa do destinto cirurgião, Dr. Jaime Celestino da Costa, que nasceu e morreu nos mesmos anos em que nasceu e morreu o meu pai
Uma Senhora muito humana que, sensibilizada com o peso que teria de carregar, estacionou o carro em frente ao estabelecimento, para carregarmos as compras, tendo ido com ela, para a ajudar a descarregá-las
A televisão tinha começado as emissões no ano anterior, mas poucos tinham televisão
De vez em quando, depois do jantar, ia com o meu patrão, enquanto a patroa ia deitar os miúdos, tinham um casal, um rapaz da minha idade e uma menina de poucos meses, a um café, na Rua de São Marçal, ver a televisão
A única coisa de que me lembro, desses tempos, foi a apresentação das Apostas Mutuas Desportivas, Totobola, tudo muito bem explicado pelo inesquecível Artur Agostinho
Foram tantas as novidades: a esferográfica, o plástico, o self-service, os eletrodomésticos, a pilula, a inauguração do Metropolitano, na qual, alguns passageiros saíram lá debaixo, dizendo que não conseguiam respirar, a inauguração do Cristo Rei, da Ponte sobre o Tejo…...
Ainda se viam algumas carroças pelas ruas, quanto aos automóveis dizíamos, lá vem um!
Ao cimo da Rua da Imprensa Nacional, do lado direito de quem sobe, havia, ainda, uma olaria, pouco tempo depois deu lugar a uma loja de plásticos
Lisboa era uma cidade fechada, triste e infeliz, amordaçada pela censura e pela Polícia Internacional de Defesa do Estado, onde não se viam turistas nem habitantes de outros Continentes, nem sequer de África, onde tínhamos colónias. Pretos, só o da Casa Africana!
A todos os que me ajudaram a chegar até aqui, muito obrigado!
A melhor prenda, que me podem dar, é tratarem-me por tu, para continuar na ilusão de que sou jovem.
José Silva Costa