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cheia

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17
Mar20

Leiam e meditem!!!

cheia

Leiam e meditem!!!

 

2020.03.15 - Domingo - 16h32.

 

" (...) Sinto na pele a brisa leve e a calidez do sol ao sair para o parque de estacionamento de Santa Maria. 

As zonas comuns e exteriores do hospital estão absolutamente desertas. 

Não se vê vivalma, nada mais se ouve para além do ruído cacofónico das sirenes das ambulâncias, e o drapejar das bandeiras: a amarela e preta da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a preta e verde do Instituto de Medicina Molecular, a preta e branca encimada pela divisa "Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa", e, bem lá no topo, a verde e vermelha, incrustada com o brasão de armas envolvido pela esfera armilar - a nacional, a da República Portuguesa. 

Paro por um momento: é poético. 

Sou médico por isto. Luto por isto. Lutamos por isto. Lutamos por lisboetas, lutamos por portugueses, lutamos por seres humanos, alavancados e propulsionados pela investigação de ponta que expande e dilata o conhecimento e a ciência. 

Não há outro sítio para nós. É aqui que temos de estar. 

Entro no habitáculo do carro e opto por não ligar a música.

Quero ouvir Lisboa, deserta, pura. 

Espero encontrar as ruas desertas, ver uma Lisboa despida de lisboetas, portugueses, seres humanos. 

Como se quer, como seria expectável de acordo com o amplamente difundido e recomendado.

Saio lentamente, suavemente, sem carregar no acelerador, sem pressa. 

Está um dia fantástico, típico de uma Primavera que teima em não chegar. As ilusões de óptica sempre me fascinaram...

Passo em frente ao portão central. 

Recorta-se a silhueta deste gigante que tenho como primeira casa desde 2010 contra o céu azul e branco, como se de uma aguarela se tratasse. 

À direita da Urgência estão as tendas amarelas - cheias, repletas.

Cheias e repletas de humanidade, plurifacetada, múltipla. Cabe tudo lá dentro. Cabem astronautas (que não são mais que terráqueos com um fato vestido) que querem trazer luz (das estrelas?) à terra, cabem terráqueos que precisam de luz para conseguir ver as estrelas. 

À medida que me desloco para longe do epicentro vou ficando boquiaberto.

Vejo filas à porta do supermercado. Vejo esplanadas com lisboetas, portugueses, seres humanos convivendo alegremente, proximamente.

Passo pelo parque que bordeja o local onde vivo.

Não são raros os ajuntamentos, com adultos na flor da idade, idosos, e crianças imberbes partilhando um rectângulo de relva. 

Ligo o rádio: sou informado pela voz grave, que articula com admirável perfeição, que ontem o Cais do Sodré estava, como sempre, cheio. 

Cheio de adolescentes, cheio de adultos, cheiro de lisboetas, portugueses e seres humanos. 

Entro na garagem. Desligo o carro. Deixo-me estar por breves instantes.

Não perceberam... As pessoas ainda não perceberam...

Estou incrédulo, recuso-me a digerir esta informação.

Penso em quem luta pela vida em decúbito ventral, ligado ao ventilador e à máquina de circulação extra-corpórea.

Penso na família em pranto, sentada na tenda amarela, desejosa de luz para ver estrelas.

Penso nos fatos,  nas máscaras, nas luvas, nas zaragatoas. 

Penso em quem ontem era perfeitamente saudável, jovem, que hoje entrou e nunca mais vai sair.

Penso nas correrias e no espírito de missão. 

Penso também nos meus, que têm mais idade e experiência de vida do que eu: nos meus pais, nas minhas avós. 

As pessoas ainda não perceberam... Continuo sem conseguir aceitar a realidade. 

Até quando? 

O que mais é preciso acontecer, contar, expôr? 

Como é possível sensibilizar mais quem não se deixa sensibilizar? 

Apercebi-me hoje que tão ou mais importante do que a luta que se trava dentro do nosso castelo, da nossa fortaleza, é a luta que se trava fora de portas. 

Santa Maria é o teatro dos sonhos para muitos que estudaram, trabalharam e lutaram toda a vida para ajudar o próximo. A nossa missão é essa. Estamos todos prontos para tal. 

Mas acreditem, para quem não é profissional de saúde, Santa Maria (tal como o São João e restantes hospitais), é neste momento um espaço de terror e de horror. 

Ajudem-nos a ajudar-vos. 

Sigam o que vos é pedido. 

Fiquem em casa. 

Leiam um livro (há milhares de livros maravilhosos, são fermento para a mente e bálsamo para a alma), escrevam o que vos vai na alma, vejam um filme ou uma série, ouçam música, dancem, reflictam, mas acima de tudo fiquem em casa. 

Por favor. 

É o que um médico, mas acima de tudo um português, e um ser humano, vos pede. (...)".

 

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